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O Triângulo das Bermudas Zumbi, um caminhão tanque fantasma e inspiração para o “Tanatoscopista”

O Triângulo das Bermudas Zumbi, um caminhão tanque fantasma e inspiração para o “Tanatoscopista”

O propósito inicial com as histórias do “Tanatoscopista” era escrever um conto curto apresentando alguns dos personagens coadjuvantes de “Phaenomena”, e também trazendo pistas sobre seu personagem principal. Enquanto eu seguia com o laborioso processo de edição e revisão do livro, de tempos em tempos e despreocupadamente eu também procurava por alguma informação ou ideia que pudesse trazer alguma nova inspiração.

Recentemente, experimentei por um par de anos a vida em uma cidade pequena de interior e, quando estava revisando o livro, ainda estava lá – morando em uma casa de dois andares numa localização estratégica. O sobrado ficava em uma espécie de Triângulo das Bermudas: ao norte, três quarteirões à frente, havia o prédio de velório público da cidade; a leste ficava o cemitério principal da cidade, a dois quarteirões de distância; e, ao lado de nossa casa, a meio quarteirão a oeste, ficavam as instalações de tanatoscopia. Costumávamos dizer em casa que vivíamos em uma espécie de Triângulo das Bermudas Zumbi – se houvesse um apocalipse zumbi, seríamos uma das primeiras vítimas na cidade a ser devoradas – os mortos-vivos viriam de todas as direções.

Enquanto eu trabalhava em “Phaenomena”, tinha o prazer de aproveitar uma visão “incrível” da janela do quarto transformado em escritório: o entediante cruzamento de duas ruas quase desertas, com casas comuns e terrenos baldios, onde praticamente nada acontecia o dia todo. Havia apenas uma exceção: um pequeno prédio de dois andares com paredes vermelhas, uma porta de correr de vidro e um painel na fachada com um letreiro – “Tanato” – e um logotipo, o contorno grosseiro de um corpo humano com um coração vermelho arredondado no peito. O que era pior: as letras “T” do letreiro tinham suas linhas verticais estendidas para além do traço horizontal que as cruzava, de modo que cada uma se assemelhasse a uma cruz, em uma também tosca referência à morte, aos procedimentos funerários etc.

Enquanto eu gastava minha massa cinzenta em noites longas e escuras no meio do triângulo zumbi daquela pequena e distante cidade, comecei a perceber que o prédio não permanecia fechado durante certas noites. De fato, não se poderia dizer se o local seguia um horário regular ou tradicional. Às vezes as portas permaneciam fechadas e trancadas por muito tempo bem no meio da tarde, enquanto o tráfego noturno era intenso. Certa noite, por volta das duas da manhã, eu me vi me esgueirando por entre as cortinas da janela, espreitando à distância um carro um tanto suspeito que estacionara em frente ao prédio, e lá permanecia, com as luzes acesas. Desconfiado, peguei a câmera e comecei a filmá-lo, e quando dei um zoom, eu os vi – o logotipo tosco de um corpo humano e o “T” semelhante a uma cruz. Era o carro da empresa de tanatoscopia e, provavelmente, o tanatoscopista estava ali dentro ao volante.

Naqueles dias, durante minhas pausas de trabalho, eu já vinha pesquisando o significado daquilo tudo – resumindo porcamente, tanatoscopia ou tanatopraxia é o conjunto de procedimentos para determinar a causa mortis – a razão fisiológica da morte de alguém. Há técnicos com formação diversa que fazem cursos de especialização, e junto com médicos legistas, detetives da polícia e outros, são os especialistas designados para determinar a causa da morte de um cadáver. Somando-se a isso, em muitas cidades, a mesma instalação onde o tanatoscopista examina os corpos também pode realizar outros procedimentos de preservação necessários e a preparação do cadáver para ritos fúnebres e enterros.

Algumas noites depois, algo intrigante aconteceu. Já passava das 3 da manhã; estávamos todos dormindo em casa, quando eu acordei com um som alto, agudo e prolongado, como um motor que havia sido ligado e funcionava em alta rotação. Eu me levantei, caminhei no escuro pelo corredor até o escritório e abri as cortinas da janela. Para minha surpresa, no quarteirão seguinte a oeste, vi um grande caminhão-tanque, estacionado ao lado do edifício de tanatoscopia, em uma linha diagonal à rua e ocupando parte dela, de maneira que carros ou pessoas passantes – que obviamente não estavam lá naquele momento, a área estava deserta – teriam que contorná-lo para seguir caminho.

Curioso que estava, decidi arriscar e sair para a rua. Desci, peguei um pedaço de pau que costumava deixar ao alcance da mão ao lado da porta da garagem, abri a porta e saí. A lua estava cheia e sua luz cremosa clareava a rua; andei em direção ao prédio e aproximei-me do caminhão. Ele tinha um longo tanque prateado com todo tipo de símbolos pintados – caveiras, relâmpagos e círculos entrelaçados, indicando que carregava materiais infectados perigosos. Na parte traseira, havia uma grande caixa de motor, uma espécie de bomba. Um tubo metálico largo e comprido, como uma enorme mangueira, estava conectado a uma válvula no topo da caixa do motor – era dali que vinha o ruído.

Até aquele momento, eu não havia visto ninguém na rua. Olhei para cima e examinei o prédio do “Tanato”. As portas estavam fechadas; as luzes estavam apagadas. Não havia nem sinal nem som de ninguém ali dentro. Anexada à lateral do edifício à qual eu me aproximava, havia uma espécie de construção secundária, inacabada, com espaços abertos na parede de tijolos e cimento nus que provavelmente seriam as grandes janelas de um salão adicional. Segui o tubo metálico que saía do tanque do caminhão com os olhos: a outra extremidade da grande mangueira estava enfiada em um daqueles espaços abertos na parede lateral de cimento, e desaparecia na escuridão do interior do prédio.

Era uma cena estranha – e no minuto seguinte ficou ainda mais. Eu estava na calçada, logo atrás do caminhão, e, determinado a descobrir algo sobre o que estava acontecendo, caminhei para a rua e comecei a contornar o veículo. Enquanto eu andava devagar, estiquei o pescoço, tentando ver o suposto motorista na cabine, já com um leve sorriso no rosto, pronto para dizer, “boa noite”… Mas não havia ninguém no caminhão. Dei um passo para trás, fiquei na ponta dos pés e olhei ali dentro – a cabine estava vazia. Senti um calafrio no pescoço. Ninguém no prédio; ninguém no caminhão. E, quando olhei ao meu redor… Ninguém na rua. Quando percebi que estava sozinho no meio da rua, acompanhado apenas pelo barulho da bomba e pela brisa gelada que soprava, senti um certo desconforto e decidi voltar para casa.

Antes de voltar para a cama, ainda dei uma olhada na cena por entre as cortinas da janela do escritório. Enquanto observava aquele caminhão-tanque prateado, fiquei imaginando que tipo de material infectado estava sendo sugado dos porões daquele misterioso edifício – restos de cadáveres? Órgãos e pedaços de membros? Sangue???

Nas semanas seguintes, tentei manter uma certa vigília sobre o prédio de tanatoscopia; especulei com as poucas pessoas que conhecia na vizinhança; inclusive descobri que a extensão inacabada ao lado do prédio principal havia sido uma tentativa do tanatoscopista de construir um crematório – e que os vizinhos mais próximos, preocupados que o projeto acabado pudesse cobrir o quarteirão com golfadas de fumaça sangrenta infecciosa, opuseram-se ferozmente a ele e, com alguma influência política na prefeitura, conseguiram bloquear o processo de construção. Na verdade, ouvi toda sorte de lendas locais, baseadas principalmente na falta de conhecimento e superstição das pessoas. No entanto, depois daquela noite, nada disso seria necessário. Aquele suposto caminhão-tanque fantasma, sugando os restos mortais armazenados naquele sinistro prédio vivente – ou o sangue dos mortos? Ou talvez até… As almas deles?!? –; aquela cena estranha, nunca explicada, era toda a inspiração que eu precisava para escrever as novas histórias. Depois daquela noite, as histórias do “Tanatoscopista” fluíram tão facilmente quanto o sangue verte de uma incisão na carne humana.