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A Síndrome da Ilha – isolamento linguístico e o atraso cultural

A Síndrome da Ilha – isolamento linguístico e o atraso cultural

Como publicarei os textos aqui em português e inglês, creio que possa ser interessante justificar essa iniciativa – e expandir a justificativa para uma reflexão mais abrangente. Parental Advisory: algumas opiniões nesse post podem ser polêmicas…

Recentemente estudei um pouco de alemão e, contrariamente a todos os comentários que já havia ouvido descrevendo a língua como um bicho-de-sete-cabeças, conforme fui aprendendo algumas de suas funções básicas, as cabeças da quimera foram se desfazendo. Alguns meses de estudo depois – em dissonância até com o professor, que lançava comentários ambíguos, dizendo aos alunos que conseguiriam aprender alemão caso se dedicassem, ao mesmo tempo em que grifava as “dificílimas” peculiaridades da língua –, o bicho já não tinha mais tantas cabeças. Talvez não fosse nem um bicho mais.

Uma tarefa básica dos professores é tentar fazer seus alunos entenderem que, ao aprender uma língua, você está tocando a ponta do iceberg de toda uma cultura, e deve se abrir a ela. Isso significa aprender novos conceitos, de novos gêneros para objetos antigos a formas diferentes de se elaborar as noções temporais. Mas… E se o estudante não percebe isso? E se a pessoa não compreende que deve abrir os olhos e deixar-se apreender mais? Que deve sair de seu isolamento e tentar enxergar o que há mais adiante?

O fardo da língua portuguesa para os brasileiros é uma boa metáfora, replicável a diversos aspectos culturais, tecnológicos e políticos que assolam esse país desde sua “criação” pelos colegas portugueses. Entre muitos autores de língua portuguesa de renome histórico, famosos, premiados, não é incomum um preciosismo, um orgulho engraçado pela persistência no uso de uma língua complicada, cheia de detalhes e regras e exceções às regras, estruturalmente complexa. Sim, com uma língua pesada e densa, cujo léxico total superaria diversas outras em progressão geométrica de volume, é divertido de se brincar. É interessante elaborar com a língua. As possibilidades – de complicação, inclusive – são infinitas. Pode-se até chegar ao ponto de se fingir erudição para impressionar ouvintes ignorantes e, assim, conseguir diversas vantagens – controle, recursos, poder, votos… E depois, é só dar uma espiada com esse viés para a (vergonhosa) história brasileira. Fica até fácil de eliciar daí uma relação entre uma língua “nativa” complexa e os abismos socioeconômicos do país.

Entre as heranças malditas da colonização portuguesa, ficamos com todos os restolhos, mais a língua, em um país rico e de proporções continentais. Por dentro da gênese do brasileiro pós-colonização europeia, a cultura escravocrata, a mansidão, a rédea, o antolho (guarde essa palavra, vou usá-la novamente; parece bem lusa – dá até para imaginar o português com aquele sotaque raspado falando com “vogaish fracash” – ant’lho). Por fora, massas intransponíveis de terras e águas. De um lado, somente água. Do outro, até se encontrar alguém, são alguns milhares de quilômetros de florestas, campos, montanhas. A Amazônia, o Pantanal, até os Andes estão no caminho para se encontrar um coleguinha a oeste que fale espanhol, quéchua ou alguma outra língua (valem parênteses aqui para lembrar a fronteira mais “permeável” a contatos diretos com outros países, nos estados do sul do país, que não por acaso passaram por num processo histórico diferente, mas a elaboração vai ficar para outra postagem por contenção espacial). Assim, simplificando porcamente, sem pressão cultural à sua volta, o Brasil foi se constituiu como uma grande ilha de falantes de língua portuguesa. “Falar espanhol? Por quê? Em função das vizinhanças?… Mas isso é hipotético, o país é bem grande – Acaba que não usa – então fica no portunhol mesmo, quebra um galho, vai saber se vai ser realmente necessário??”

Agora imagine um rapaz que nasce na Bélgica. Se ele se deslocar 100 quilômetros em qualquer direção, se não for poliglota, está fadado à mudez. É isso aí, menos de cem quilômetros – a distância de São Paulo a Campinas. A oeste, já tem que falar inglês. Ao sul, precisa falar francês. A leste, alemão, e, logo ali acima, ao norte, holandês. O país tem três línguas oficiais, só para começar. Imagine na escola quantas devem ser as “segundas” línguas e matérias opcionais!

Torceu o nariz? Imagine que você tem um colega paquistanês. Ele vai crescer falando urdu (derivada do árabe) e inglês, e sem dúvida não vai escapar de saber punjabi, um pouco de caxemiri se for mais para o norte e outros idiomas indo-arianos como o pashto e o sindhi. Mas e aquele colega da República Democrática do Congo, no meio da África? O francês adaptado dos belgas acabou ficando como denominador comum das diferentes etnias amarradas num território onde se fala o kikongo (derivado do crioulo), o lingala, o swahili e o tshiluba.  E o colega na Índia, que só para transitar por lá tem que começar com hindi e inglês e ainda tem que se virar no meio de mais de vinte línguas nacionais?

Bem… E se esses coleguinhas vissem um amigo brasileiro, que tem dificuldades com a própria língua, “choramingar” quando tem que estudar inglês? Holly fuck!

E já que chegamos nele, e o inglês? Ouvi, por anos, e ainda ouço tanta gente dizer – “nossa, inglês é difícil”. O inglês veio com a recolonização americana da América do Sul (vou resumir assim para não fazer outro post). Desde que o país se tornou cliente oficial dos Estados Unidos e passou a pavimentar suas terras para o Ford T ao invés de fazer estradas de ferro, foi se constituindo a conhecida e já estabelecida pseudonecessidade de se falar inglês (atenção aqui para o neologismo: pseudo+necessidade: “necessidade” não é “utilidade”). Mais uma vez, um fato cultural resultante de uma imposição político-econômica. Mas um dos diferenciais aqui é que a disseminação do inglês foi um fenômeno mundial; é obvio que a língua pegou carona no poderio imperialista britânico e, posteriormente, norte-americano, mas certamente não é só isso. O inglês é uma língua muito fácil. Muito mais fácil que qualquer língua latina moderna; incomparavelmente mais fácil que o Tyrannosaurus rex portuguesis que insistimos em falar. É flexível, tem um léxico menor e mais versátil e adaptável; tem funções e conceitos fáceis de serem manipulados, e até foneticamente oferece poucos obstáculos.

Eu não tive a sorte da geração dos meus pais, que pegaram um raro momento nesse país de educação devastada em que, além da monstrenga portuguesa, estudaram nas escolas (…públicas!!) também francês, espanhol e, o melhor, latim, que lhes deu base para assimilar facilmente as outras línguas derivadas. Mas eu tive a sorte de ter sido filho desses mesmos pais, professores, que me enfiaram numa escola de inglês lá pelos três ou quatro anos de idade (e me fizeram continuar até os dezoito), numa época em que mal se colocava filhos para aprender uma segunda língua, ainda mais tão cedo.

O resultado disso se fez bem presente em minha vida de várias maneiras. Entre diversos trabalhos e empregos “experimentais” que tive na minha juventude, por volta dos dezessete, dezoito anos cheguei a ser estagiário de uma empresa de auditoria, dessas grandes multinacionais. Depois de algumas semanas trabalhando no mais baixo escalão de uma equipe chefiada por um gerente gracinha chegado a um bullying corporativo, fui alçado da equipe por ordem de alguns dos sócios. Para quê? Buscar os outros sócios ingleses que chegavam para reuniões ao Brasil, e ajuda-los com a vida na cidade. Eu tinha dezessete anos e eles, uns sessenta, e levaram um susto quando viram um reles trainee os recebendo. Eu nem sabia, mas haviam pesquisado os funcionários com melhor performance em língua inglesa nos testes de admissão. Não estou escrevendo isso para me gabar; pelo contrário, é para que se olhe o outro lado – entre gerentes, diretores e sócios não havia pessoas com garantida competência para receber as visitas internacionais. Pelo menos não mais que o trainee de fraldas que havia simplesmente estudado de forma séria outra língua.

O advento da Internet, somado à desenvoltura no uso da língua que mais se espalhou pelo planeta na Idade Moderna, também me proporcionou outras maravilhas. Em diversas áreas da minha vida – do cuidado com a saúde a pesquisas de trabalho, passando por assuntos dos mais diversos, fossem eles espiritualidade, história, religiões, bichos de estimação ou kung fu – eu acabava acessando mais informações do que muita gente à minha volta, até mesmo que as pessoas encarregadas de me ensinar; professores, terapeutas, orientadores. E, muitas vezes, quando eu voltava até a pessoa que me havia sugerido algum assunto de pesquisa trazendo informações novas, o problema passava a ser outro: ter que traduzir o material para que conseguissem ler, pois não eram capazes. Estavam ilhados. Não só no seu território imenso e distante de divisas, mas na sua língua – e, consequentemente, em sua cultura e conhecimento.

E assim, fora o uso corriqueiro e social, fui reduzindo o uso do português e substituindo-o por outra língua, frequentemente o inglês, quando a meta era pesquisar e ampliar ou aprofundar o campo de conhecimento. Há anos só me lembro de fazer buscas na Internet em português quando esgoto as possibilidades em inglês e, dependendo do tema, em mais um ou outro idioma. Com o tempo, a conhecida mas nem sempre percebida limitação de conhecimento vai se escancarando, e pode-se perceber que muita, muita coisa, muitos textos, livros, autores – conhecimento muito importante, informações edificadoras, tecnologias inovadoras – muita “coisa boa” do mundo não existe em português. E, logo, os nativos do continente insular brasileiro que “acham inglês difícil” não têm acesso a isso tudo, e nada disso vai lhes cair no colo.

Aqueles que ganharam a língua portuguesa como língua-mãe num país do tamanho – e com o histórico colonial brutal – do Brasil, também ganharam antolhos. Antolho é aquele troço que se coloca sobre a cabeça de jumentos, mulas e cavalos, com duas abas laterais que tapam os olhos da besta e estreitam sua visão, fazendo-a enxergar estritamente o que está imediatamente à sua frente. Não deixam que se veja mais à frente, muito menos numa amplitude maior à sua volta.

Resta a nós decidirmos se vamos usar o antolho, continuando com a preguiça monolingue na nossa imensa ilha tropical, ou se vamos arregaçar as mangas e tirar o atraso das limitações trazidas com a nossa ingrata e jurássica língua materna.